28.12.06

O Cristianismo e o Ocidente!

Quando, no começo deste mês, arqueólogos do Vaticano desenterraram o sarcófago com os restos mortais do apóstolo Paulo, nascido no ano 10 e decapitado em 67, vinham à luz alguns séculos de civilização, de que a mensagem de Cristo é, a um só tempo, conseqüência e causa. Combatido, submetido ao obscurantismo politicamente correto e tomado como inimigo das minorias multiculturalistas – tão mais barulhentas quanto mais minoritárias –, o cristianismo, não obstante, guarda as chaves do humanismo moderno e da democracia e constitui o que o homem tem produzido de melhor em pluralismo, tolerância e, creiam!, avanço científico. "A humanidade produz bíblias e armas, tuberculose e tuberculina (...), constrói igrejas e universidades que as combatem; transforma mosteiros em casernas, mas nas casernas coloca capelães militares", escreveu o romancista austríaco Robert Musil (1880-1942) em O Homem sem Qualidades. Falamos de uma "civilização" que parece ser a improvável história de um permanente paradoxo. E, no entanto, ela avança, sempre duvidando de si mesma, mergulhada às vezes no horror, mas se recuperando, em seguida, para a maravilha.

Cristo e o cristianismo seguem como as principais referências da civilização ocidental. De tal sorte é assim, que nem pensamos nisso. Culturas vitoriosas são estáveis, pacíficas, civilistas e até um tanto frívolas na proteção dos seus fundamentos. Quem viu o papa Bento XVI, na Turquia, orando como oram os muçulmanos assistiu à presença serena de um pastor que não duvida da natureza inclusiva do seu credo. O cristianismo, na sua manifestação mais poderosa, a Igreja Católica – 1,098 bilhão de pessoas, segundo o Anuário Pontifício de 2006 –, voltava a Paulo. Se não mais para converter, para compreender. Estima-se que um terço da humanidade – 2,1 bilhões de pessoas – seja cristão.


É claro que o que vai acima se presta ao contencioso. Especialmente num tempo em que toda evidência serve à contestação. As culturas vitoriosas dão à luz os críticos de seus próprios fundamentos. É a melhor evidência de um triunfo. Assim, haveria ali a indisfarçável afirmação da supremacia de uma visão de mundo. Cristo é e seguirá sendo a principal referência do que reconhecemos no Ocidente como a nossa "cultura" porque somos todos cristãos. Se não formos pela fé, seremos pela história; se não formos porque devotos da Revelação, seremos porque caudatários de uma revolução. Cristãos, ateus, judeus, islâmicos, budistas, materialistas, espíritas, agnósticos, comungamos de um patrimônio que entendemos como um ideal de civilização e de justiça.


Se o cristianismo conferiu uma ética nova, como se viu, à cultura greco-romana, tomou dela emprestados alguns séculos de especulação filosófica. De sorte que se constituiu, no tempo, como a memória de dois humanismos, de duas visões totalizantes: a helênica – grega – e a dos Evangelhos. Apostamos nas virtudes do exame de consciência; estamos ocupados em controlar nossos impulsos para ser reconhecidos como pessoas a serviço do bem e da verdade; esforçamo-nos para demonstrar que preferimos ser colhidos pela injustiça a praticá-la; aspiramos a valores espirituais acima dos materiais e apreciamos tal qualidade nos outros; boa parte de nós acredita numa justiça divina que sucede à morte, e os que não chegam a tanto demonstram seguir um modelo perfeito ao menos na idéia. Somos, de fato, não só cristãos, mas também herdeiros involuntários do filósofo grego Platão (428-348 a.C.). E onde essas idéias não se transformaram em leis, em códigos leigos, o poder se impõe pelo terror, pela ditadura, pela violência institucionalizada, pela morte – e, freqüentemente, assim se procede "em nome de Deus". Não há humanismo leigo que tenha sido tão poderoso na história humana quanto três palavras que salvam: consciência, arrependimento e perdão.
Por Reinaldo Azevedo,
Veja, 26 de dezembro de 2006.

3 comentários:

Prof-Forma disse...

Queira o Martel permitir-me pequenas discordâncias:

-o Cristianismo não está, sob hipótese alguma, na base da Democracia Ocidental. Bem pelo contrário, devo dizer: se antes dele era comum a eleição entre os diversos povos europeus, com a sua emergência esta foi perdida durante centenas de anos. Nem é preciso ir para as longevas eras da Atenas Clássica: basta lembrarmo-nos que nas tribos germânicas que invadiram o Império Romano, enquanto foram pagãs, vigorava o princípio da eleição dos chefes pelos pais de família; quando se converteram ao Cristianismo, adoptou-se o sistema hereditário.
Ou seja, se antes do Cristianismo até as hordas bárbaras tinham, na Europa, alguns rudimentos de Democracia, a adopção da fé em Cristo acabou até mesmo com esta incipiente liberdade. E mais se diga: se houve alguém que, de forma tenaz, se opôs aos progressos políticos obtidos com as Revoluções Liberais, foram as Igrejas, mormente a Igreja Católica, com a publicação do Syllabus Errorum e a proclamção do Dogma da Infalibilidade Papal (até hoje em vigor), como forma de estabelecer que a Razão Humana não podia opor-se o modelo político definido pela vontade divina e exposto não só pelas Escrituras como pelas palavras dos Doutores da Fé;

-Diz-se no texto também que as palavras perdão, arrependimento, e consciência, foram as mais importantes na definição do nosso corpo de valores. Mas se para o autor isto é uma coisa boa, eu vejo nelas precisamente aquilo que tem posto a nossa civilização às portas do massacre: não estivessemos nós tão prontos a perdoar os pobrezinhos dos terroristas que só têm fome e uma profunda desorientação, conseguiríamos ter maior discernimento e ripostar devidamente a esta canalha; não fosse a nossa tendência miserável tendência para ver na revolta dos mouros um reflexo de alguma coisa que fizemos, de uma culpa, de um pecado nosso, mesmo longínquo no tempo (há quem ainda hoje, para desculpar os islamistas vá buscar a Idade Média e diga «coitados, nós tambémandámos lá a matá-los durante as Cruzadas»...), e teríamos talvez a vista menos turvada: e a isso ainda se soma a noção absurdamente injusta de que quem leva uma bofetada na face direita deve oferecer a esquerda para evitar futuros problemas (e isso tem-se visto entre a politicada e os media europeus, pelo menos, que já falam em tratar muito bem os Mouros agora para não sermos maltratados por eles quando forem maioria), e o sentimento fraternalista peçonhento de que todos somos filhos de Deus e temos de nos dar muito bem, coisa que só consigo definir como conversa de castrado, como provas flagrantes de que é o excesso de Cristianismo no nosso tecido cultural e moral que está a minar a nossa capacidade de resistência. Direi: quanto menos Cristão for o Ocidente na sua actuação - que fique claro que não me oponho a fé alguma -mais probabilidades tem de vencer a horda mafomética.

Esta é, como digo, apenas a minha opinião, que creio ter alguma lógica e algum fundamento. Mas espero sinceramente ler o ponto de vista do Martel nos próximos dias.

Melhores cumprimentos

MARTEL disse...

Caro amigo,

Permita-me chamá-lo assim.
Antes de qualquer coisa, devo fazer-lhe uma confidência. Quando iniciei este blog tinha o propósito - comum a todos os que se empenham nessa militância - de conscientizar as pessoas do perigo iminente que a dupla multiculturalismo/relativismo têm acarretado. Mas tão raro são os comentários acerca dos textos aqui postados que ultimamente sentia-me desestimulado: parecia estar pregando no deserto!
Porém, eis que agora me deparo com uma apreciação longa e minuciosa de sua autoria, que não só me encheu de satisfação como também me restituiu o ânimo. Suas intervenções não o qualificam apenas como o leitor mais assíduo, mas também como um oportuno colaborador.
Nesse caso particular você não apenas colabora, mas também me convida a uma troca de reflexões - à qual acho desnecessária, mas que todavia vou corresponder.
Antes devo me posicionar na questão e dizer que vejo o cristianismo, sobretudo através de sua expressão católica, como um dos empreendimentos mais notáveis da história humana, e um estudo objetivo das suas origens, propósitos, métodos, vicissitudes, falhas e realizações lançaria mais luzes sobre a natureza e as possibilidades dos homens e dos governos do que o estudo de praticamente quaisquer outros assuntos abertos a investigação. Logo, creio que qualquer julgamento nosso (meu, seu ou do referido autor), feito assim em poucas linhas, jamais será definitivo, ainda que proveitoso. Para tanto seria mister demonstrar aqui o que a Igreja fez em prol ou em dano da civilização e da felicidade temporal dos povos; mas seria preciso um grosso volume, para se dar a este interessante e vasto assunto o desenvolvimento que merece ter.
Em todo caso, volto a afirmar que levando em consideração o seu conhecimento e visão da história, não poderia negligenciar uma devida apreciação.
Primeiro acredito que o autor através desse texto quis ressaltar que, para além da missão transcendente de difundir o evangelho, a Igreja assumiu e cumpriu a missão histórica de resgatar o patrimônio da civilização greco-romana e transmiti-lo, sob uma nova ordem, aos povos bárbaros que o ameaçavam – dando origem ao que então conhecemos por civilização ocidental.
Entendo também que o autor quis mostrar o quão fácil é no momento atual, depois que a Igreja concluiu sua transformação, votar ao esquecimento todos os seus benefícios, e logra-los, entretanto, com soberba ingratidão.
Houve evidentemente na história da Igreja um período longo e sombrio: a já lendária Idade Média. Mas esse milênio de teocracia, também denominado e denunciado como Idade das Trevas, foi a meu ver o período de gestação da cultura e civilização ocidental: um mal necessário, cuja relação custo-benefício foi bastante compensatório, haja vista que, sob esse domínio, tribos bárbaras acostumadas aos rigores de uma mísera existência nas florestas e pântanos europeus, viram-se no decorrer de séculos, transformadas nas nações mais dinâmicas, cultas e ricas do planeta.
Assim, entendo que o autor quis demonstrar que o modelo de civilização fomentado direta e indiretamente pela Igreja tornou-se paradigma para todas as nações do mundo, quer sejam cristãs ou não.

Outro ponto interessante do seu comentário aborda questões éticas e morais: perdão, arrependimento e consciência! Um tema sobremaneira pertinente no momento atual, quando mais do que nunca faz-se necessário repensar o custo-benefício da “Liberdade”.
Mas creio que devemos ser cautelosos nesse proceder para não incorrermos em radicalismos.
Inevitavelmente, ao longo do seu texto, ouvi ecos de Nietzsche - por quem aliás tenho profunda admiração. Como sabemos, Nietzsche também não simpatizava com a moral cristã, e eu concordo com você e com ele quando ressaltam a necessidade de querer que o homem seja mais valente e austero consigo e com os outros – quase todas as filosofias éticas pedem isso – todavia, ir além disso é pedir que sejam mais impetuosos, agressivos ou hostis.
Está certo também que a humildade seja ocasionalmente verberada: “Já dura demais a imploração e o abaixar de cabeça”, diz Nietzsche, mas não temos visto nenhuma superabundância dessa virtude no caráter moderno. Não é a humildade que nos aflige, mas sim a hipocrisia diplomática!
Creio que na visão do autor a função essencial do cristianismo tem sido a de moderar, pela inculcação de um ideal extremo de serenidade, a selvageria natural do homem, e qualquer pensador que receie terem os homens caídos num excesso de virtudes cristãs precisará apenas olhar a sua volta para se sentir aliviado e tranqüilo.
Ademais, meu amigo, repare que, no embate atual, a Igreja, mas do que qualquer poder político, tem sido o maior e mais expressivo militante na defesa da Europa e do ocidente.
Eis pois aqui minha apreciação sobre os textos de ambos.
Mas não a entenda como uma contestação ou síntese, longe disso. É apenas a opinião de um cristão que ainda confia na atuação e nos propósitos de sua Igreja.

Cordiais saudações, e nunca me negue o favor de sempre fazer-se presente, quer seja discordando, contestando, refutando, colaborando, etc.
Sua participação nos enriquece.

Muito obrigado.

Prof-Forma disse...

Caro amigo;


Começo por agradecer as palavras cordiais que me dirigiu, e por deixá-lo à vontade para me chamar amigo se assim o entender.
Tento, sempre que visito um blogue, deixar nas caixas de comentários não apenas uma opinião sobre o texto mas também - e sobretudo - matéria para alguma reflexão, ou até para salutar controvérsia. É um velho hábito, que também aqui tenho feito: não gosto de opinar dizendo só «concordo» ou «não concordo». Dá-me muito mais prazer poder fomentar algum diálogo com quem está do outro lado.

Passando às suas apreciações, fico a saber que o Martel é Católico. Peço-lhe então que não veja nas minhas críticas ataques à sua fé, mas apenas à instituição Igreja Católica, sendo certo que não foi apenas esta Igreja quem contribuiu para os problemas que mencionei.
A Igreja é uma estrutura de homens, logo propensa ao erro; e, não nos esqueçamos, foi durante muito tempo uma estrutura de enquadramento político, jurídico, e intelectual. O pensamento ocidental foi durante muitos séculos e em muitos lugares profundamente condicionado pelos ditames religiosos do Catolicismo, e isso foi, objectivamente, pago muito caro.

O que o Martel me diz é que a Igreja Católica legou o pensamento greco-latino ao Mundo Bárbaro ao mesmo tempo que difundia a palavra de Cristo, e que terá sido por isso que, dali a vários séculos, puderam emergir nações com a pujança económica da Alemanha, etc. Ou seja, a pregação religiosa foi acompanhada de difusão cultural: houve desvios, imposição de pensamento único, mas, a longo prazo, as pessoas conseguiram, com base na cultura disponibilizada pela Igreja, criar um corpo de ideias sobre o qual assenta o Mundo Ocidental de hoje (creio ter seguido bem o seu raciocínio).
Mas o problema reside precisamente na longa ditadura do dogma: é que se a Igreja disponibilizou esse pensamento, durante muito tempo ele era pouco mais do que um manancial de erudição: havia uma grande quantidade de preceitos e conceitos que, porque contrários à doutrina, não deviam ser seguidos. E isto significou um atraso irrecuperável no desenvolvimento da Humanidade: é que se não tivesse havido Idade das Trevas, imposta quase exclusivamente pela Igreja (lembremo-nos que para vários autores as próprias invasões bárbaras são uma consequência do Cristianismo, dado que Teodósio queria usar os invasores para impor o Catolicismo de Niceia às várias heresias) o desenvolvimento dos dias de hoje seria incalculável. Olhemos para o pensamento Romano, mesmo para o pensamento tardio de Celso, por exemplo; atentemos depois na aridez dos Mil anos de Idade Média - e se não tivesse havido Idade Média, como seria o Mundo de hoje?
Bem sei que a Civilização talvez não chegasse nunca aos povos bárbaros - e daí talvez não, se nos lembrarmos das trocas culturais que exisitiram entre Romanos e Bárbaros. Mas tudo isto é meramente especulativo, e, como disse e bem, demasiado sumário e simplificado.
No fundo, é apenas uma opinião que creio algum fundamento.

Nas questões morais e éticas, devo confessar que me apanhou: sou fervoroso leitor de Nietzsche, que admiro não só como pensador mas também como prosador.
Diz-me que o que aflige o Mundo actual não é o excesso de humildade cristã, mas si a hipocrisia diplomática. Entendo o que me diz: as pessoas, de facto, não são tão escrupulosamente seguidoras dos preceitos religiosos. Mas situações há em que, por hipocrisia, se sentem na obrigação de os seguir - e isso é superiormente verdade na actividade política.
Neste caso, é de se perguntar porque se sentem as pessoas nessa obrigação: e a minha resposta é que as virtudes cristãs, não sendo praticadas no dia-a-dia, estão entranhadas no tecido cultural e na psique das pessoas - até porque parte deste pensamento foi aproveitado e «reeditado» pelos movimentos de Esquerda, cujo peso nos media é o conhecido.
Fernando Pessoa, num artigo político escrito nos anos 20, dizia que «o Socialismo é um Cristianismo sem Deus». A comparação é simplista, concedo, mas de facto há pontos de contacto entre ambas do ponto de vista teórico e sobretudo na prática - nomeadamente, nas ideias de que o sofrimento de A é culpa da atitude de B. Isso acontece a todo o momento, e é visível a toda a hora, sobretudo nos tais media de Esquerda de que falei acima. Ora, quem está constantemente sob o foco dos media, sendo escrutinado e revirado de cima abaixo, com todos os jornalistas à espera do primeiro deslize para atacar? Os políticos. E se os jornais veiculam a ideia de culpa e de necessidade de arrependimento sobretudo quando se trata com minorias ou com países do Terceiro Mundo, os políticos ou cedem a essa pressão mediática, ou caem em desgraça. Ser-lhes-ia necessária uma coragem que manifestamente não têm para afrontarem a máquina e saírem dos moldes do politicamente correcto, enfrentando as provações necessárias mas salvando o seu povo.
Não que eu esteja a dizer que a Igreja esteja por trás da cobardia dos governantes: no entanto, a ideia de arrependimento foi muito difundida por ela, e reaproveitada por um movimento posterior.
Já quanto à Oposição das Igrejas à investida muçulmana, tenho de discordar abertamente de si: quando da questão da aula de Regensburg, o Papa cedeu em horas à pressão dos manifestantes muçulmanos - o chefe da mesma Igreja que demorou séculos a pedir perdão pela Inquisição! Além de ter feito uma demonstração de "dhimmitude" (condição daqueles que são dhimmis, i.e., dos cristãos a viver sob domínio muçulmano) ao rezar voltado para Meca em Ancara. Não sei se rezou ou não, mas estas atitudes pagam-se caras: neste caso, foi mais um atestado de fraqueza que o Ocidente passou a si próprio na casa do inimigo.

Creio ter sido esclarecedor nos pontos que eventualmente tivessem ficado menos claros. Farei o possível para continuar a visitar esta casa no futuro, e colaborar tanto quanto possa.


Saudações