20.12.06

Juramento sobre o Alcorão


A chegada a Washington do primeiro muçulmano eleito para o Congresso americano aparece cercada de polêmica, com um parlamentar republicano expressando o temor de ver comprometidos os "valores e as crenças tradicionais" dos Estados Unidos.
Para Virgil Goode, republicano pela Virgínia (leste) conhecido por sua posição contrária à imigração, "se os cidadãos americanos não acordarem para fazer valer seus pontos de vista, haverá mais e mais muçulmanos eleitos exigindo o uso do Alcorão" durante as cerimônias oficiais.
Ele fazia referência a Keith Ellison, eleito em 7 de novembro representante pelo estado de Minnesota (norte), e que será o primeiro muçulmano a integrar o Congresso.
No mês passado, Ellison anunciou que, ao tomar posse, iria prestar juramento sobre o Alcorão - embora, na verdade, a cerimônia de posse dos parlamentares, prevista para 4 de janeiro, seja organizada de maneira coletiva e não esteja prevista a utilização de um livro santo.
"Temo que, no próximo século, tenhamos muito mais muçulmanos nos Estados Unidos, se não adotarmos a política de imigração estrita que eu acho necessária para preservar os valores e crenças tradicionais dos Estados Unidos da América", acrescentou Goode, em carta endereçada a um de seus assessores, transmitida nesta quarta-feira à AFP.
Uma grande organização de defesa dos direitos dos muçulmanos, o Cair (Council on American-Islamic Relations), exigiu desculpas após a divulgação da carta.
"As observações islamofóbicas do Sr. Goode enviam uma mensagem de intolerância que é indigna de qualquer eleito", avaliou um responsável do Cair, Corey Saylor.
O porta-voz de Goode disse que ele não tem intenção de apresentar suas desculpas e que assume plenamente o teor de sua carta.
Ellison, um negro americano, cuja família teria se estabelecido nos EUA em 1742, segundo o Cair, já tinha sido alvo de um comentarista ultraconservador, Dennis Prager, que lhe disse para prestar juramento sobre a Bíblia e não sobre o Alcorão.
"Sr. Ellison, aqui é a América, e não é você que decide sobre qual livro seus eleitos prestam juramento", lançou Prager, avaliando que um juramento sobre o livro santo do Islã o desqualificaria para compor o Congresso.
Outra organização conservadora, a Associação da Família Americana, reivindicou uma lei que faça da Bíblia o único livro aceitável para os juramentos oficiais.
De acordo com o jurista Eugene Volokh, nada na Constituição obriga a prestar juramento, o que protege ateus e agnósticos. "Por que os muçulmanos e os outros não poderiam se beneficiar da mesma proteção?", questionou Volokh no blog da edição on-line da revista conservadora National Review.
De fato, a polêmica recai sobre a cerimônia privada organizada tradicionalmente pelos parlamentares para marcar sua posse, após o ato público e coletivo. Lá, diante das câmeras, podemos vê-los, geralmente, com uma mão levantada e a outra pousada sobre um livro santo.
Vários eleitos não seguiram a tradição, entre eles, os presidentes John Quincy Adams (1825-29) e Theodore Roosevelt (1901-09), que não colocaram sua mão sobre a Bíblia, quando foram empossados.
O senador Joseph Lieberman, judeu praticante, sempre prestou juramento sobre a Bíblia de sua família - certamente, não era uma versão cristã contendo o Novo Testamento. Já o senador republicano Gordon Smith levou a Bíblia e o Livro das Escrituras mórmones, ao tomar posse em 1997.
Ser chamado de anti-semita ou de perigoso extremista não desencoraja Keith Ellison, que graças aos habitantes de Minnesota (norte) se tornou o primeiro muçulmano eleito para o Congresso dos EUA, assim como o primeiro parlamentar negro eleito por este estado, que é uma circunscrição considerada "a mais branca" do país.
Keith Ellison, 43 anos, não gosta, porém, de ser rotulado de primeiro muçulmano ou primeiro negro, lamentando que o interesse voltado para sua religião possa tornar inaudível seu programa, baseado na defesa dos mais pobres, em uma cobertura integral do atendimento à saúde, no desenvolvimento das energias renováveis e na retirada dos soldados americanos do Iraque.
Nascido em Detroit (Michigan, norte) de uma família católica, Keith Ellison se converteu ao Islã aos 19 anos, estando ligado, por 18 meses, ao Nation of Islam, o movimento negro radical de Louis Farrakhan em meados da década de 1990.
Como advogado, admite e lamenta, hoje, o caráter anti-semita e contra os brancos que o movimento adquiriu e se apresenta como um muçulmano moderado, pronto para trabalhar com pessoas de qualquer religião ou origem.
Ainda assim, seus adversários o acusam sempre de ser um extremista. Um político republicano de Minnesota afirmou recentemente que Keith Ellison, que se apresenta com as cores democratas, era próximo da extrema esquerda e que, como advogado, defendia prioritariamente os matadores de policiais.
Ellison denuncia a política do governo Bush, opõe-se aos que falam em choque de civilizações e lembra que os muçulmanos (4 milhões nos Estados Unidos) têm as mesmas aspirações compartilhadas por todos os americanos: ter uma boa educação, criar uma empresa e ter um lugar de culto.

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