27.2.07

Cuidado: A Rússia está em marcha!




O recente discurso do presidente Vladimir Putin na Conferência sobre Políticas de Segurança de Munique criou uma certa comoção. Putin criticou a expansão da OTAN e a política externa americana de uma forma que nos faz lembrar o antigo inimigo soviético. Em resposta, o Secretário-Geral da OTAN manifestou uma mistura de frustração com a esperança de que se poderia driblar as observações de Putin. Antigo consultor para assuntos de segurança de três presidentes americanos, Brent Scowcroft disse que o discurso de Putin foi "desagradável", mas fez notar o fato de que Putin ainda estava disposto a cooperar com os Estados Unidos. O secretário de defesa, Robert Gates, tentou amenizar respondendo que "uma guerra fria já era suficiente", enquanto o presidente Bush assegurou seus compatriotas de que a Rússia e os EUA continuariam a trabalhar juntos.
O que foi que Putin disse em seu discurso que criou tamanho rebuliço?
Logo no início do discurso, Putin disse: "A estrutura desta conferência me permite evitar a polidez excessiva e a necessidade de falar com rodeios, utilizando termos diplomáticos agradáveis, porém vazios. O formato desta conferência me permitirá dizer o que eu realmente penso sobre os problemas da segurança internacional". Uma afirmação desse tipo, da boca de uma antiga autoridade da KGB e atual ditador, geralmente prefigura um engodo. Embora podendo revelar certas verdades, o presidente russo dificilmente entregaria o que pensa realmente, pois fazer isso reduziria seu discurso, de uma odiosidade vulgar, a um cinismo tão voraz ao ponto de deixar os cabelos em pé. Um homem que ordena o assassinato de jornalistas dissidentes não pode se dar ao luxo de expor seu repugnante raciocínio a pessoas normais. Isso ocorre porque Putin não é normal. Ele é um homem da KGB. Ele é um "soviético". E suas realizações – se é que alguém realmente merece crédito por elas – não são realmente suas. A ciência militar, a sociologia e o pensamento econômico por trás do ressurgimento da Rússia são a realização de organizadores ocultos, estruturas secretas da KGB e do Partido Comunista russo. Putin é uma cria dessas estruturas, seja lá qual for o seu cargo específico e seu poder verdadeiro. Há um establishment oculto na Rússia e Putin é seu representante visível, e não deve ser confundido com o tipo de presidente que se encontram nos países ocidentais. Tampouco se deve confundir o sistema político da Rússia com qualquer outro, pois ele é tipicamente asiático. É um sistema que confia em um exército secreto de informantes e provocadores, na coordenação entre o crime organizado e a polícia, na oposição controlada e agentes duplos, em posturas de fachada e falsas aparências. Nesse contexto, a última coisa que se ouvirá do líder russo é o que ele "realmente pensa". O que se ouve de seus lábios é algo calculado. Não importa que pareça cru ou inicialmente ineficaz, pois é psicologicamente pré-calculado. As afirmações dos estadistas russos são parte da estratégia russa.
De acordo com Putin, "é de conhecimento geral que a segurança internacional compreende muito mais do que questões relacionadas à estabilidade militar e política. Envolve a estabilidade da economia global, a superação da pobreza, a segurança econômica e o desenvolvimento de um diálogo entre civilizações". Putin está apelando para os sentimentos feridos dos países pobres, e ao "complexo de culpa esquerdista" dos países ricos. A fórmula das nações ricas versus nações pobres é fundamental para sua estratégia. A guerra de classes, o conceito mais fundamental de todo o marxismo, está sendo colocada em destaque. É uma arma com o intuito de incitar a maioria dos países. Pense na situação global da seguinte forma: há uma guerra, e de um lado estão os pobres. Do outro lado os ricos. É nesse contexto que o presidente Putin citou a fala do presidente americano Franklin D. Roosevelt, que disse: "Quando a paz é rompida em qualquer lugar, a paz de todos os países, em todos os lugares, está em perigo". É algo que Roosevelt disse quando a Segunda Guerra Mundial teve início. Essa observação, diz Putin, "permanece atual hoje em dia".
Putin está dizendo que nós estamos no início de uma nova guerra mundial. Desta vez, no entanto, os EUA são o país agressor. O mundo todo deve agora se curvar ante o "único mestre, o único soberano", ou resistir. Essas palavras de Putin não têm como alvo os EUA ou a Europa, embora ele as diga diante de uma reunião de líderes americanos e europeus. Seu alvo é o mundo árabe, a África, a Ásia e a América Latina. Ele lhes está dizendo que os EUA querem tiranizar o planeta "contrariando a democracia", que a atitude americana de ensinar a democracia aos outros é mera hipocrisia. "Aqueles que nos ensinariam", diz ele, "não querem eles mesmos aprender".
O domínio global americano é inaceitável, diz Putin. Conduz à guerra e ao massacre em massa. "Estamos testemunhando hoje um uso quase descontrolado de força – força militar – nas relações internacionais, força essa que está mergulhando o mundo em um abismo de conflitos permanentes", afirma Putin. "Estamos vendo um crescente desdém aos princípios básicos do direito internacional. E normas legais independentes estão, na realidade, se assemelhando cada vez mais a um sistema legal de um estado único. Um estado único e, é claro, os Estados Unidos antes de tudo, [que] ultrapassaram as fronteiras nacionais de todas as formas possíveis. Isso é visível na política econômica, na agenda política, cultural e educacional que eles impõem às outras nações. E quem gosta disso? Quem está feliz com isso"?
Putin está apelando ao crescente anti-americanismo que décadas de propaganda bolchevique cultivaram em todo o mundo. Ele desafia o poder hegemônico na sua presença. Finge falar pelo mundo em desenvolvimento, inclusive o mundo árabe. Afinal, ele está em vias de visitar a Arábia Saudita. Os dois grandes produtores de petróleo, Rússia e Arábia, estão se aproximando. A estratégia na área de energia é parte da grande estratégia russa. Em seu pronunciamento, Putin está avisando à OPEP que se defenda contra um grave perigo. Diz que o direito internacional não pode mais protegê-los. Os americanos têm como e irão invadi-los. Mas há uma poderosa alternativa aos Estados Unidos. O sub-texto tácito é que a Rússia e seus aliados (como a China, a Índia e o Brasil) têm a influência econômica e o poderio militar para virar a mesa sobre os EUA e a Europa também. "O PIB combinado", lembrou Putin, "medido em paridade de poder de compra de países como a Índia e a China já é maior que o dos EUA. E um cálculo similar com o PIB dos países do BRIC – Brasil, Rússia, Índia e China – ultrapassa o PIB acumulado da União Européia. E, de acordo com os especialistas, no futuro essa diferença só aumentará". Se os EUA querem uma corrida armamentista, que venham. A Rússia está pronta e se preparando para se rearmar de forma grandiosa, como o ministro da defesa da Rússia anunciou há pouco tempo. E a Rússia tem a riqueza necessária para aplicar o merecido castigo.
Segundo Putin, os próprios americanos são responsáveis pelo terrorismo e a situação das armas de destruição em massa no planeta. A hipocrisia americana, diz Putin, estende-se até mesmo à não-proliferação nuclear, pois o domínio ameaçador dos EUA "é um incentivo para que muitos países adquiram armas de destruição em massa". É culpa dos EUA se a Coréia do Norte e o Irã estão construindo um arsenal atômico. Foram os próprios americanos os responsáveis. Deve-se perguntar, diz ele, por que os americanos estão bombardeando e atirando em pessoas nessa fase do jogo? Afinal de contas, a Rússia virou uma democracia! Qual o problema? Os americanos perderam a fé no poder dos valores culturais e democráticos?
E o que aconteceu com o controle de armas e o processo de desarmamento? Bem, afirma Putin, os americanos jogaram o processo no lixo. "A Rússia pretende cumprir estritamente as obrigações que assumiu [em termos dos tratados de controle de armas]. Esperamos que nossos parceiros [ou seja, os americanos] também agirão de forma transparente e se policiarão para não deixar de lado algumas centenas de ogivas nucleares excedentes para o caso de necessidade. E se hoje o novo Secretário de Defesa americano declarar que os Estados Unidos não esconderão armas excedentes em armazéns ou, como se diz, debaixo do travesseiro ou do cobertor, então eu sugiro que todos nos ergamos e saudemos essa declaração de pé. Seria uma declaração muito importante".
O totalitarismo de Putin está escamoteado, assim como as estruturas secretas que o levaram ao poder ficaram escondidas durante a presidência de Yeltsin. A mente totalitária é uma mente paranóica. Constrói sua posição baseando-se em mentiras e fica concatenando tramas de destruição, esperando realmente que seu principal inimigo esteja fazendo a mesma coisa. Quando ele sugere que os Estados Unidos querem esconder armas nucleares "debaixo do travesseiro", confessa que a Rússia fez muito mais. Na realidade, a Rússia tem milhares de armas nucleares escondidas e não catalogadas (de acordo com o falecido Bill Lee, um destacado especialista da inteligência americana). A Rússia rompeu quase todos os tratados que assinou. Qualquer um que acompanhe os jornais com atenção suficiente se lembrará das histórias de violação de tratados sobre armas químicas, nucleares e biológicas em vigor. E agora que a Rússia está ajudando o Irã a desenvolver um arsenal atômico torna-se quase risível Putin dizer à sua platéia em Munique que "A Rússia adere estritamente e pretende aderir ainda mais ao Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares, assim como o regime de supervisão multilateral de tecnologias de mísseis". O presidente russo não é sério. Ele é cínico, e conta com o cinismo de seus camaradas do Terceiro Mundo.
Putin realmente prevê que a Rússia terá de romper com o Tratado de Não-Proliferação que restringe os mísseis nucleares de médio alcance. São essas as armas que a Rússia utilizou para ameaçar a Europa nos anos 80. Eram então consideradas as armas mais desestabilizadoras. Deve-se imaginar os arrepios dos estadistas europeus presentes ao encontro.
Mas a reação americana foi fraca. Não havia nenhum Winston Churchill disposto a dizer que a Rússia ainda era uma ameaça, e que ela estava rompendo seus tratados enquanto se preparava para a guerra. Ao desfazer-se da asneira que foi a Cortina de Ferro, o novo totalitarismo russo é polido, seletivo, e enganosamente aberto. O Ocidente acha-se emaranhado economicamente em sua rede. Poder-se-ia argumentar que existe liberdade na Rússia, não fosse pela eliminação de tantos jornalistas – como Paul Klebnikov e Anna Politkovskaya (para não mencionar o envenenamento por radiação de Alexander Litvinenko, em Londres). Os métodos para esmagar os dissidentes são mais precisos hoje em dia, com o benefício extra da negação convincente. Alguns observadores compararam o discurso de Putin ao Discurso de Fulton, de Churchill. Alguns disseram que Putin estava declarando uma nova Guerra Fria. Mas não havia nada de novo em seu discurso. Altos líderes russos e representantes do regime já disseram repetidas vezes as mesmas coisas. Além disso, Putin já declarou guerra aos Estados Unidos depois do massacre de Beslan. Ele acusou os Estados Unidos de estarem por trás dos terroristas na Rússia.
A Rússia está, portanto, em marcha, e essa marcha começou já faz algum tempo.



© 2007 Jeffrey R. Nyquist
Publicado por Financialsense.com
Tradução: Caio Rossi

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